Aprendi a não julgar o livro pela capa

O ditado popular, que significa não julgar alguém ou algo por características visuais e afins, não foi dito aqui para relatar alguma experiência com alguma pessoa que eu não era muito afim. Mas quero usar no sentido literal. Hoje eu aprendi a realmente abrir um livro e lê-lo para entender se de fato é ruim.

Mariana Camara
4 min readMar 13, 2024

Eu faço parte de uma geração de pessoas não heterossexuais e não cisgêneras que se entenderam, assumiram e (sobre)viveram a saída do armário em meados de 2010. E não, o mundo já não era tão evoluído quanto a questões de gênero e sexualidade, antes de 2015, onde houve um bum de discussões virtuais sobre esse tema. Então naquela época a gente não tinha muita referência nas mídias, nos catálogos, nos comerciais e nem no entretenimento, a não ser para alívio cômico. Me lembro de que, em 2012, eu lia contos sáficos (lésbicos) em alguns sites de fanfic, blogs e demais sites. Filmes deste gênero eram raros e era uma dificuldade para assistí-los (ou você pegava cortado no youtube, ou você tinha que correr o risco de baixar um vírus no seu dispositivo).

Mas uma coisa que era mais dificultosa, ao meu ver, não era tudo isso. Era o fato de existir histórias ruins, que não faziam sentido, que carregavam muito sofrimento relacionados a finais não felizes, onde uma morria, ou traía. Então meio que me tornei uma especialista de saber sobre histórias ruins sáficas. E não era porque eu esperava, mas porque tudo caminhava para a mesma direção.

Isso acontecia porque quem começou a trazer histórias de envolvimento entre mulheres foram homens cisgêneros, então eles relatavam as suas perspectivas e ideias do que seria um relacionamento entre duas mulheres, partindo de um princípio de que, duas mulheres não dão um bom relacionamento, porque sempre falta algo e, este algo, é um homem cis montado em seu cavalo branco. Um grande exemplo disso foi Azul é a Cor Mais Quente. Se você ama este filme, sinto muito, mas este filme passa uma visão de como a sociedade vê relacionamentos sáficos: rápidos, cobertos de traição, negligência e hipersexualização. O tanto de cena sexual explicita no filme, que não agrega ao filme, mas só satura o mesmo e reforça o estereótipo sáfico.

E aqui eu não quero dizer que sou contra cenas sexuais entre duas mulheres em filmes e livros. Eu acho válido, mas devemos estar atentos quando aquilo exagera e reforça imagens sobre um grupo. Um filme, série e livro não será igual a realidade, de certa forma, mas potencializar um discurso, uma imagem que já é presente distorcidamente em sociedade, não pode ser mais tolerável.

Isso começou a mudar quando vemos um grande volume de escritoras sáficas ganhando visibilidade em suas histórias, um pouco antes de 2020. Eu li Amora, de Natalia Borges Polesso, que foi indicada por uma ex-namorada minha e eu pude adentrar neste universo de possibilidades, de realidades, de histórias, de representatividade sáfica. O livro possui variados contos, sendo cada um de uma forma, o que deixa bem diversificado e cheio de emoções variadas.

Posteriormente a este, eu li um livro de uma autora independente que não me recordo o nome, mas o conteúdo era semelhante ao que eu já tinha lido quando mais nova: trazia muita dor, sofrimento e mágoa na vivência lésbica. Tive que desistir.

Não que eu ache que relacionamentos e a vivência lésbica não é complicada. Eu sei das dificuldades, principalmente sendo uma mulher lésbica, negra e de periferia. Mas vivermos focadas só nisso faz nossa vivência se tornar mais um peso. A gente já nasce achando que a nossa vivência é um peso, por sermos diferentes do que é considerado normal, por não nos encaixarmos em muitos lugares. Então eu acho que as dificuldades e realidades podem ser citadas numa história, assim como a felicidade, os momentos felizes e de aceitação que podem compor a nossa vida.

Por fim, eu tive uma pausa literária, onde eu não conseguia ler nada. Olhava os livros sáficos que eu julgava muito pela capa e pelo nome do livro, achando capas vazias e nomes sem sentido. Pelo menos era o que eu achava um pouco antes de estar aqui, sentada, escrevendo isso. Baseando-me na minha experiência em acessar a literatura lésbica, a cultura lésbica, eu já julgava que as histórias carregariam isso.

Mas isso mudou a quase uma semana, quando eu tive a coragem de comprar um romance numa livraria do shopping. Achei que eu demoraria para ler Delilah Green não está nem ai, de Ashley Herring, cerca de um mês, que eu abandonaria o livro no meu armário e prometeria dar uma chance depois de alguns dias, porque era chato, sofrido demais, etc. Mas eu o li em apenas 4 dias, de tão envolvida que fui pela história, que carrega dificuldades da vida adulta, traumas e mais coisas. E, além disso, é um romance. Eu nunca fui fã de romance, porque eu não via atrativo nos romances convencionais. Mas eu consegui lê-lo com dedicação, afinco e envolvimento. E me senti incentivada a ler mais livros desta temática, que foram escritos para pessoas como eu.

Eu acho que isso foi a prova de que muitos medos, receios, preconceitos que ganhamos com a experiência sáfica, principalmente nós nascidas antes de 2000, nos brecam para o novo, para nos sentirmos abraçadas e vistas além das estatísticas, ou de um personagem para alívio cômico.

Obrigada a esta geração de escritoras sáficas por nos permitir a vivenciar isso. E se você ainda não se permitiu ler histórias sáficas de autoras sáficas, você não sabe o que está perdendo.

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Mariana Camara

Macumba, musculação, literatura, lesbianidade e surtos de escrita que me fazem ir e voltar deste lugar. Insta: @mariric_