Uma barata a meia luz
Senti ela tocando nos meus pé. Naquela madrugada solitária e caótica. Talvez ela sentiu a minha tensão e perdeu seu medo de mexer comigo.
Ao olhar para baixo, pude ver aquele ser pequeno e asqueroso correr por entre os fios do computador. Era uma pequena barata. Ao olhá-la, senti meu corpo se comprimir sobre a cadeira em um gesto de repulsa e medo. Baratas sempre me davam medo. Mas conviver, por alguns segundos, com ela me vez rever como e a via.
A luz rarefeita da vela a iluminar a sala me permitia vê-la tentar achar uma fuga. Ao observar esse artrópode correndo entre os fios, a mesa e o sofá, eu pude ver que só existia uma pessoa com medo: ela. Eu não estava com medo desta barata, mesmo pedindo a Oxalá que alguém acordasse e pudesse me acudir. Talvez eu estivesse intrigada em como ela chegou ali e que ela não viveria muito.
Vê-la com medo de mim me fez perceber que meu medo dela não existia, afinal eu era maior que ela. A qualquer momento eu poderia levantar e meter uma chinelada nela. Mas eu não o fiz. O seu desespero em sair dali era tanto que me tocou profundamente e não fez cócegas em meu coração, igual suas antenas fizeram nos meus dedos do pé.
E vendo ela sendo morta por alguém que finalmente veio me salvar de uma coisa que já não sentia mais, e jogá-la num saco junto com a sua pequena vida que nunca mais iria voltar, me deu muita pena dela. Com ela foi um pouco da minha solidão noturna, um pouco da minha raiva do sistema caótico e algumas reflexões vazias.
Eu não queria criá-la, nem amá-la. Eu não queria nada dela assim como ela não queria nada de mim.
Eu fui diferente com ela. Talvez eu ainda desmaie diante de outras baratas. Mas eu fui diferente e ela também, talvez.